sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A questão do poder

O abuso do poder, com que convivemos dia a dia, tornou o poder um tema tabu. A cada novo escândalo na área política parece confirmar-se: "O poder corrompe". Assim passa despercebido que o poder não é um privilégio de alguns; o poder é simplesmente próprio do ser humano. Poder não é sinônimo de dominação. "Poder" é o verbo que expressa liberdade: "Então não posso fazer isso? Posso. Sou livre". De fato, ter poder no sentido próprio é ser livre perante as coisas e as pessoas. A narração sacerdotal da criação apresenta Deus criando o ser humano à sua imagem e semelhança. Nessa condição cabe ao ser humano "dominar", isto é, ser livre diante da criação e ter poder sobre o mundo.
Mas o ser humano a quem compete dominar não o indivíduo isolado (o que só ocasionaria conflitos de poder e de liberdade), mas o coletivo humano. Numa reflexão mais ampla sobre o texto bíblico - sem entrar na discussão sobre a intenção do hagiógrafo - pode-se julgar sugestivo que, no poema sacerdotal da criação em sete dias (primeiro relato da criação), Deus, ao criar o ser humano, se refira a ele no singular e dirija à coletividade (plural) a ordem de dominação do mundo:  "Façamos o homem (no singular).... Que eles dominem (no plural)..." (cf Gn 1,27s). Deus chama a "dominar" o ser humano concreto, isto é, tanto enquanto coletivo que vive seu devir comum como enquanto pessoa individual que vive seu próprio destino dentro do coletivo humano. A realização humana se dá na medida em que o poder se exerce de tal maneira que cada ser humano (indivíduo) é a razão e a fonte última de suas decisões num todo humano (coletivo) que é igualmente origem de suas decisões. Para expressá-lo com Hanna Arendt: "O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concreto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo se conserva unido".
Enquanto o poder é do coletivo, ele não pertence ao indivíduo; mas o coletivo só tem poder na medida em que se constitui pelo consenso dos indivíduos. E aí o indivíduo exerce seu poder. O "lugar" do poder é a decisão dos indivíduos de agregar-se e agir em comum, buscando consenso, de forma que o poder de cada um se conjugue no poder do coletivo.
O ser humano não está feito; faz-se na decisão sobre si. Por isso, a questão do poder é a questão mesma do ser humano. E a solução está em que o poder seja exercido simultaneamente pela totalidade humana e por cada um dos membros da totalidade. A esfera pública é o espaço da liberdade. Não cabe, pois, dizer que a liberdade de um acaba onde começa a liberdade do outro. As liberdades são simultâneas e consistem exatamente no respeito mútuo, e mais que no respeito, em ir ao encontro da liberdade do outro para que se estabeleça consenso. A partir dessa concepção de liberdade, a existência de outras pessoas não é limitação, mas condição do "poder", pois a pluralidade pertence à condição humana.
Entre a liberdade (e, portanto, o exercício do poder coletivo e a de cada ser humano há uma dialética peculiar. O ser humano só se realiza, se o coletivo humano a que pertence também se realiza. Mas, por sua vez, o sentido do coletivo humano é possibilitar a realização de cada ser humano. E cada um tem que dar sua contribuição à realização do coletivo. Concretamente acontece, porém, que o indivíduo tenta esquivar-se ao poder do coletivo, e o coletivo tenta ignorar o poder do indivíduo.
O açambarcamento do poder por uma pessoa ou por um grupo que se arroga representar a coletividade, nunca é algo pacífico. Sempre é necessário justificar-se; não só quando o poder é assumido por um golpe de força. Até mesmo o regime democrático precisa justificar-se  e o faz pela ficção jurídica de que a vontade geral (maioria dos votos) é a vontade de todos. O único poder capaz de se autojustificar é o poder gerado na fraqueza.
pe. Francisco Taborda
Extraído do livro: A Igreja e seus ministros, editora Paulus, p.46-49

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