sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Carta de Jon Sobrino a Ellacuría no aniversário de seu martirio


"sempre” do povo crucificado. "O que fazer com os bons”.
(Dean Brackley)(1)

Querido Ellacu(2):

É uma ficção escrever-te. Porém, talvez desse modo possamos nos dizer coisas que podem ser importantes. E, com isso, gostaria de contextualizar um pouco o aniversário de teu martírio. Vou te falar de três coisas da atualidade, tal como as vejo, que têm tudo a ver com o que foste e com o que disseste.

1. O "sempre” do povo crucificado. Já não se fala muito de "povos crucificados” como fizeram tu e Dom Romero, chegando a essa genial formulação, creio que independentemente um do outro e guiados pelo mesmo espírito salvadorenho e cristão. E menos ainda se insiste em que esse povo crucificado é "sempre” o sinal dos tempos, como escreveste no exílio, em Madri. A razão para esse silêncio não é que volte a estar em voga o pensamento utópico de Ernst Bloch ou de Teilhard de Chardin, teólogo. E o mundo não está melhorando, mas continua gravemente enfermo, como disseste em teu último discurso. A honradez piorou com o real, e o "sempre” não é politicamente correto. Porém, não vou dar voltas. Continuam existindo Haiti e Somália e a nova epidemia do homicídio, de 12 a 15 assassinatos diários no país, nos últimos anos, a enfermidade mais mortífera em nosso país. "O light” avançou muito no modo de pensar e "o politicamente correto” escravizou a linguagem: "vulnerabilidade”, os "menos favorecidos”, "países em vias de desenvolvimento”. Nada soa mal.

Por isso, mencionar o "sempre” parece ser coisa de masoquistas. Porém, não é assim. No país sempre chove, e nesse ano também. Na natureza sempre é a mesma: torrentes, destruição e morte. Porém, sempre são os mesmos que sofrem as consequências; os que vivem nas quebradas, nas favelas e barracos. A pergunta de Gustavo Gutiérrez continua sendo fundamental: "onde dormirão os pobres?” Há povos depredados, como o Congo; povos ignorados, como o Haiti; povos inundados, como o nosso... Continuam sendo o povo crucificado.

E os ricos e poderosos? Sempre sofrem alguns danos; porém, quase sempre os superam sem muito custo. E nem falemos nas crises financeiras: são investidos milhões de dólares ou euros para que o sistema não afunde. O povo crucificado não vê a vida como dada; os ricos, sim. E têm a profunda convicção de que são os eleitos; estão convencidos de que merecem viver bem. Elevam a realidade a escândalo metafísico se lhes acontece algo grave. Porém, coisas muito mais graves acontecem na África ou no Bajo Lempa e não há escândalo. Pertence ao existencial histórico de ter nascido pobres.

Ellacu, quero dizer-te que existe também outro "sempre”. Tem muita gente honrada que trabalha para que "o povo inundado” –falando de El Salvador- não acabe morrendo como "povo desalojado” ou como "povo afogado”. A entrega e a bondade também têm seu "sempre”. E, às vezes, surge um Dean Brackley que, quando lhe dizem que muitos rezam por ele, responde com toda simplicidade: "Rezem pelos que têm câncer e não recebem a atenção médica que eu recebo. E rezem pelos que, nesses dias, ficaram sem casa e sem comida”.

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