Para vivenciar
uma noção integral do sujeito cristão, faz-se necessário dar passos no sentido
de superar antagonismos que estão enraizados em muitas mentalidades.
O primeiro é o
antagonismo entre a fé e a vida. Segundo esta noção, o mundo da fé é superior
e, até mesmo, oposto ao mundo da vida. Por fé, entende-se, segundo esta
concepção, tudo o que se relaciona ao mundo espiritual, ao culto e aos
sacramentos. No outro lado, estaria a vida comum de todos: o trabalho, as funções
e os compromissos
familiares, a
educação dos fi lhos, o mundo da política etc. (cf. GS, n. 43).
Jesus nos indica
que tudo, menos o pecado, pode ser mediação do amor de Deus. É precisamente no
mundo da vida que o amor de Deus se manifesta, como nos mostram os Evangelhos. Jesus
não frequentava apenas as sinagogas (espaço da “fé”), mas também atuava em
barcas, na margem do lago, nas casas, na cidade, nos caminhos. Diante do
Evangelho de Jesus, podemos dizer que não há nada propriamente profano, porque
tudo pode ser mediação desta manifestação da misericórdia maravilhosa de Deus,
que vai além de todo entendimento e transforma as pessoas.
Outro
antagonismo é o de Igreja-mundo. Segundo esta perspectiva, a Igreja seria uma
instância superior e, até mesmo, oposta ao mundo. Esta relação de
oposição e exclusão
não pertence ao
núcleo do Evangelho nem à perspectiva do Concílio Vaticano II. Ao contrário,
reconhecer o fato da Encarnação – o mistério de Deus conosco, comprometido com
nossa história a tal ponto de dar-nos o Filho, fazendo-se um de nós e assumindo
em tudo a humanidade, menos o pecado – faz-nos valorizar este único mundo e
esta única história que nos compete viver, unidos a todo o gênero humano. A
Igreja está comprometida com este mundo, como sacramento e sinal do amor e da
misericórdia de Deus para com todos (cf. LG, n. 1), e, nesta missão, peregrina
até que o Reino de Deus se manifeste plenamente em novo céu e nova terra.
Há também
antagonismos persistentes entre identidade eclesial e ecumenismo, missão e
acolhida do outro. O diálogo é uma postura inerente à natureza e missão da Igreja
no mundo e não simplesmente uma estratégia de evangelização. “O diálogo não só
foi iniciado, mas tornou--se uma expressa necessidade, uma das prioridades da Igreja”
(UUS, n. 31).
A dicotomia
entre Igreja e mundo e entre fé e vida está na raiz da atitude de valorização
unilateral dos ritos, em detrimento da responsabilidade social e da luta pela
justiça.
Se orientado por
esta divisão, o mesmo cristão, que valoriza os ritos, pode apresentar
comodismo, indiferença e até incoerência em sua vida de cidadão do mundo. O
Papa Francisco questiona que “apesar de se notar a participação de muitos nos
ministérios laicais, este compromisso não se refl ete na penetração dos valores
cristãos no mundo social, político e econômico; limita-se muitas vezes a
tarefas no seio da Igreja, sem um empenhamento real pela aplicação do Evangelho
na transformação da sociedade” (EG, n. 102). Tudo isto nos leva a considerar
que o cristão nunca pode ser visto isoladamente de seus enraizamentos básicos, enquanto
pessoa humana: sujeito relacionado com outros e inserido neste único mundo em
que vivemos, e de cujo destino inevitavelmente participamos. No entanto, lembra-nos
a Carta a Diogneto: “ (os cristãos) vivem na sua pátria, mas como forasteiros;
participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria
é pátria deles, e cada pátria é estrangeira” (cf. cap.V).
Estudos da CNBB nº 107, n.62-68
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